A Origem da Verdade
Na vastidão do tempo, aproximadamente quatro milênios atrás, encontra-se o primeiro murmúrio de descontentamento de um cliente, um grão solitário na areia do relógio. Isso ocorreu no solo da Suméria, no domínio exuberante da Babilônia, onde a verdade era tão valorizada, tão sagrada, que sua ausência precisou ser registrada para se tornar uma marca, uma cicatriz na face do tempo.
Imagem do Museu Britânico, licenciada em Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International (CC BY-NC-SA 4.0) license.
O artefato 131226 do Museu Britânico reluz em uma gaveta um marco incontestável do inconformismo de Nanni, o consumidor enganado, traído em sua confiança.
Se buscar atentamente encontrará uma cascata de páginas web, centenas, se não milhares, se desdobrarão diante de seus olhos. Todos clamando com a mesma voz louvores a este artefato de barro como sendo a primeira inscrição de descontentamento comercial conhecida na nossa história. No entanto, trata-se do registro da primeira instância de desonestidade - do primeiro dedo apontado para a falta de veracidade, o dedo acusatório dirigido a Ea-nasir, por não entregar o que foi prometido, por não agir com ética, por não honrar a verdade.
Nenhuma página sussurra sobre a primeira reclamação do homem contra a quebra da confiança, a primeira voz levantada em protesto contra a falta de veracidade. Todas destacam a reclamação de Nanni e colocam em segundo plano a desonestidade de Ea-nasir. A desonestidade permanece ausente nas páginas da história, como se fosse um eco de uma era antiga, um mal menor, uma lição não aprendida sobre a necessidade da verdade.
Ainda agora, em nossa modernidade iluminada por circuitos integrados e links, ecoam as lamentações, as queixas de clientes contra fornecedores. Ao longo das minhas andanças, do meu tempo vagando com os pés na areia e os olhos no mar, testemunhei centenas de casos. Até eu mesmo, em momentos de agonia e decepção, levantei minha voz em protesto. A ferroada da traição, o sabor amargo de ter sido enganado, perfura o peito como uma lâmina afiada. Mesmo em minha mente, nunca se formou a ideia de que o fornecedor tivesse, deliberadamente, tecido uma teia de engôdos e mentiras. Que me envolvesse em falsidade e frustração. Teria você pensado de outra maneira ao não receber o produto comprado?
No jogo de cartas, a dança sutil da sorte com a habilidade, já conheceu alguém que se desviou do caminho reto e justo, que trapaceou para vencer? E na sala de aula, em meio ao sussurro de papéis e ao arrastar de lápis, já viu alguém colar em uma prova? Colou? Na fila para o pão, para o cinema, para a vida, alguém já furou a vez? No cofre público, conhece alguém que tenha desviado verbas, distorcido números, traído a confiança do povo?
Quantos disfarces criamos, quantos eufemismos ao longo do despertar da civilização, apenas para relativizar a dureza fria da falta de ética, da desonestidade, da mentira? Criamos palavras, construímos vocabulários inteiros, trapaça, cola, corrupção. Como se pudéssemos obscurecer a essência da falta de verdade, como se pudéssemos tornar a mentira menos fria e amarga por meio da linguagem, chamando-a de outro nome.
A queixa de Nanni, como um sussurro carregado pelo vento através das eras, continuará lembrando-nos a importância da verdade. Sua voz só nos alcança, no entanto, graças à escrita. A tecnologia mais importante desenvolvida pela humanidade para o registro do que é, do que poderia ser e do que gostaríamos que fosse.
O Alvorecer da Escrita
Mergulhando na história deste pedaço mal conservado de argila, descobriremos que a escrita cuneiforme, empunhada pelos babilônicos quatro milênios atrás, se baseava em um alfabeto. Imagine, há tantos anos perdido no tempo, um alfabeto já sustentava o registro oral além daqueles que falaram, um registro físico quase permanente. Levando aqueles que não estiveram lá à saber o que se passou.
O uso de um alfabeto, e não símbolos ideográficos, parece curiosamente familiar para nós, herdeiros da tradição latina. Uma linhagem mais próxima de nós do que a daqueles que optaram por empreender o caminho dos símbolos e das imagens, no passado e na contemporaneidade.
A espinha dorsal da civilização ocidental foi construída com alfabetos. Primeiro, esculpidos pelos babilônios em tabuinhas de barro sob o sol escaldante do Levante. Em seguida, passando pelas mãos dos assírios, imortalizada na pedra sob a luz de um sol diferente. E, finalmente, os gregos as levaram consigo, impregnando as letras com seus pensamentos e filosofias, moldando-as de forma própria. Um alfabeto que floresceu para se tornar a raiz da escrita latina que molda nossas palavras, nossos pensamentos, nosso mundo. Chegamos aqui por caminhos tortuosos que moldaram o alfabeto latino sob influência de centenas de povos, escritas e culturas diferentes.
A escrita, tal como a conhecemos agora, registro físico de tudo que houve, há e haverá, não surgiu do fulgor de um amanhecer. Foi o resultado de um longo processo de evolução que se estende por, no mínimo, sete mil anos. Nesse tempo, o homem experimentou várias formas de escrita. Talvez o segundo vislumbre de um alfabeto, logo após o babilônico, tenha sido o Proto-Sinaítico, criado por semitas que trabalhavam no Egito, entre 1850-1550 A.C. Aqui arrisco uma hipótese há que ter havido algum tipo de influência entre a antiga Babilônia, em seus anos de crepúsculo e o amanhecer do povo de Israel, ainda que no cativeiro egípcio. Homens de letras e histórias já registram textos muito próximos aos textos da Torah, para que seja possível vislumbrar um efeito de aculturamento entre os dois povos sob a influência do Egito antigo. Não paramos ai.
Mais tarde, o alfabeto fenício foi forjado, nascido do mar e do comércio dos povos que viviam no Levante. Hoje, Líbano, Síria, povos que viviam ao norte de Israel por volta do século XII A.C. Criaram um sistema simples, adaptado as necessidades daqueles que negociavam com povos diferentes. Um alfabeto composto de 22 símbolos, todos representando o que chamaríamos hoje de consoantes, usados para dar voz ao silêncio, em pergaminhos, e validar acordos entre homens de negócios. Usavam-se, por exemplo, para marcar o nome do fabricante e a data armazenamento do vinho em uma ânfora de barro. Assim, quando um homem se debruçava sobre o vinho, sabia de onde vinha e quantos verões haviam passado desde que a uva tinha sido colhida. E para registrar pedidos, entregas, acordos e prazos. Há 3200 anos os fenícios usavam um alfabeto assim como eu, e você.
O vinho é interessante, quando o olhamos a evolução da escrita. Os homens vêm marcando o nome do produtor e a data de armazenamento do vinho desde que começaram a bebê-lo. Os mais velhos desses registros remontam ao tempo de Nanni. Gosto de pensar que, depois de registrar sua queixa, Nanni tenha ido até a taberna mais próxima. Talvez tenha pego uma ânfora, olhado para o nome e o ano gravados nela, despejado o vinho em um copo. Talvez tenha encontrado algum conforto, esquecendo por um momento a perfídia da traição. A época era outra, os valores eram outros, mas os homens, o vinho e o poder da escrita já eram os mesmos.
No século IX A.C., os gregos, marinheiros do Mediterrâneo, encontraram o alfabeto fenício. Adaptaram-no, acrescentaram vogais, e moldaram o primeiro alfabeto composto da representação fonética de sons, considerando o que conhecemos como alfabeto na nossa soberba contemporânea.
Com o tempo, o alfabeto grego, provou-se eficiente e duradouro, espalhou-se por povos diferentes ao longo do Mediterrâneo, substituindo o alfabeto fenício como ferramenta comercial, servido de fundação de muitos sistemas de escrita. O alfabeto latino que prevalece no mundo ocidental é filho bastardo do alfabeto grego. Graças a força da expansão de Roma por todo o mediterrâneo e além, a civilização ocidental será construída sobre os pilares do alfabeto latino. No século I A.C., os romanos consolidaram o alfabeto latino. O formato das letras latinas foram inspirados pelo alfabeto grego, particularmente a variante usada pelos etruscos, que habitavam a Itália central antes da ascensão de Roma. Assim, a maioria dos alfabetos modernos, incluindo o português, a última flor do Lácio, têm suas raízes firmemente plantadas neste legado greco-romano. E por isso e estamos aqui, um escrevendo, e outro lendo. Mas, neste texto, pretendemos falar da verdade e agora que entendemos de onde vêm as nossas letras, precisamos deixar a latinidade e voltar aos gregos e a história da sua escrita.
Os gregos alcançaram um grande marco civilizatório graças ao comércio: criaram um sistema de escrita que tinha sinais distintos para consoantes e vogais a partir do alfabeto fenício, por volta do século IX A.C.. Nós começaremos a nossa história no século VIII A.C., um século fundamental para nossa história, uma marca da importância na alvorada da verdade, o século de Homero.
As datas precisas de quando Homero compôs os épicos, a Ilíada e a Odisseia, ainda são discutidas pelos homens de letras e história. Em geral, acreditam que essas obras surgiram na virada entre a Idade das Trevas grega e o período Arcaico, o século VIII A.C. o século das primeiras grandes obras da literatura ocidental. Apenas 100 anos depois da invenção da escrita, pelos homens de negócios, a escrita chega aos poetas.
As histórias contidas nos épicos de Homero, provavelmente são mais antigas do que os pergaminhos que as guardam ou as citam. São poemas que falam de heróis e eventos da Idade Heroica Grega, remontando ao tempo micênico, três ou quatro milênios antes deste século oitavo que tanto nos importa. Estas obras foram sussurradas de ouvido a ouvido antes que o cinzel, ou a tinta, usasse o alfabeto para aprisioná-las em pedra, pergaminhos ou páginas.
É digno de nota que a Ilíada e a Odisseia estão entre as mais antigas histórias escritas do ocidente. Por sua importância, nunca deixaram de ser estudadas e lidas. Durante séculos, os homens nascidos no ocidente aprendiam a ler e a escrever sob a luz de velas e tochas debruçados sobre essas obras sonhando com mares, monstros, feiticeiras, cavalos, heróis e deuses.
Os homens de letras e histórias do nosso tempo acreditam que Homero ditou seus poemas. Se isso é verdade, o nome do escriba que teve o privilégio de transcrevê-los se perdeu com o tempo e não temos como honrar sua memória. Para ser frio, direto e impiedoso, tenho que dizer que pouco sabemos sobre os textos originais, sequer temos certeza que foram ditados por Homero. Os textos completos mais antigos que podemos consultar, o Venetus A, datam do século X A.C.. Quando o tempo de Homero já era chamado de antigo. A incerteza sobre as origens destes poemas os tornam mais interessantes.
O poemas de Homero constituem o marco histórico que precisamos para posicionar a importância escrita na história da verdade. São poemas, as civilizações grega e latina sofreram profunda influência destes poemas e agora, precisamos voltar nossos olhos para um julgamento.
O Julgamento de Sócrates
Cerca de quatrocentos anos separam o registro das aventuras de Odisseu do julgamento de Sócrates. Quatrocentos anos. É a vaidade que nos permite considerar este como o tempo que nossa civilização gastou entre aprender a escrever e começar a filosofar. Olhando do nosso tempo, nos idos de Sócrates a escrita deveria ser uma tecnologia nova alguns reconhecem seu potencial, a usam para negócios, acordos, leis. Mas poucos a usam nas atividades particulares das suas vidas. Sócrates não a usava. Nem sabemos se ele sabia ler e escrever. Ainda assim, seus pensamentos chegaram até nós.
Sócrates, uma presença que atravessa a história, o pilar da filosofia. Um homem cujo verdadeiro retrato permanece um enigma. Um verdadeiro quebra-cabeças incompleto. Quase conseguimos ver a imagem que representa o homem nos fragmentos de textos antigos que temos. A maioria destes textos atribuída a seus alunos: Platão e Xenofonte ou a Aristófanes, o mestre do humor que, contemporâneo de Sócrates, dominava a sátira e, não poucas vezes, tomava Sócrates como alvo preferencial. Este é o caso em As Nuvens onde Sócrates é retratado como um sofista um tanto confuso. Deve ter doído, Aristófanes bateu em uma ferida.
Sócrates, para os padrões gregos, não era um espécime notável. Baixo, robusto, com um nariz achatado e olhos que se destacavam mais do que o usual. As palavras de Platão no “Banquete” e Xenofonte nas “Memoráveis” não são gentis nem carinhosas, não descrevem um herói, um ídolo ou alguém que devesse ser invejado e admirado. Descrevem um homem, comum, problemático, difícil no trato, decidido e impávido. Um homem velho que caminhava descalço, raramente se lavava e parecia imune à bebida e à lascívia. Um homem tão perdido em seus pensamentos filosóficos que frequentemente parava e se perdia em reflexões profundas. Ao longo da história, esta descrição foi usada por artistas para imaginar a aparência do homem. Hoje podemos ousar criar uma imagem de Sócrates passando esta mesma descrição para um algoritmo de inteligência artificial.
O Julgamento de Sócrates, uma marca indelével da história antiga, ocorreu em Atenas, cidade estado onde se vivia um protótipo de democracia, por volta de 400 A.C. O dia exato do julgamento e o clima, são incertos. Podemos imaginar que foi durante o outono mediterrâneo. Provavelmente o clima era suave, com dias limpos de Sol alto com temperatura variando entre 15 e 25 graus, não muito diferente dos nossos dias. Platão, discípulo de Sócrates, ofereceu o relato bem detalhado que podemos completar lendo as observações de Xenofonte. Não fora um julgamento comum. Esteve o tempo todo mais próximo um embate de ideais, uma prova da liberdade de pensamento enfrentando as correntes da ortodoxia. Uma competição entre a verdade e a narrativa retórica.
Sócrates enfrentou acusações severas de Meleto, Anito e Lícon. Três acusadores frente de um jure formado por 500 atenienses. Corromper a juventude de Atenas e desdenhar os deuses da cidade, esses eram os pesos pendurados em seu pescoço. Mas, no fundo, era sua habilidade de desafiar, com suas perguntas incisivas, o status quo que realmente o levara àquele tribunal. Como um artista de palavras, Sócrates se defendia, não com as lágrimas ou súplicas desejadas pelo acusadores, mas com a lógica e uma honestidade cortantes. Ele defendia uma vida examinada, a verdadeira essência da existência humana. No rito do Julgamento, Sócrates falou primeiro e fez uso das duas únicas defesas que possui: honestidade e simplicidade, escudadas pela retórica aguda e afiada.
Sócrates, firme em seu caminho, desafiou as acusações. Hora corrigindo a oratória dos seus acusadores de forma irônica e destemida, hora afirmando que deveria ser julgado pelos seus atos e pela verdade e não pela narrativa retórica. Em defesa da acusação de corromper a juventude, Sócrates questionou, segundo Platão, em Apologia: “Sou culpado por corromper os jovens e por fazê-los acreditar, não nos deuses da cidade, mas em outros. Isso é o que você diz, Meleto, não é?” (Platão, Apologia, 24B-C).
Defendendo-se, afirmou que seu dever era questionar Atenas, questionar as pessoas. Dizia que a vida, se não examinada, era inútil. Ele via o seu papel de questionador como um dever mais importante que a vida e morte. A corrupção da juventude, ele argumentou, não fazia sentido. Por que ele desejaria o mal para aqueles que o cercavam? E quanto à impiedade, não era ele conhecido por suas profundas reflexões sobre os deuses e o divino? Aqui, tocou na essência da misologia, o medo do raciocínio, um mal maior do que a própria morte.
O veredito, quando veio, foi apertado, porém condenatório. Sócrates, usando da ironia, sugeriu que deveria ser recompensado, não punido, por seus serviços à Atenas. Mas o destino estava selado; a pena de morte foi decretada. Mesmo nesse momento, ele se manteve inabalável, aceitando a sentença com a serenidade de alguém que acredita firmemente na retidão de seus caminhos. E que a morte pode não ser algo mal em si. Xenofonte retratou a aceitação serena de Sócrates: “De todas as maneiras, Sócrates nunca parou de se preparar para morrer. Seu princípio era cuidar da alma, não do corpo; acreditava que a virtude não vem das riquezas, mas as riquezas e todas as outras coisas boas dos homens, tanto privadas como públicas, vêm da virtude”. (Xenofonte, Apologia de Sócrates, 14)
Nos dias seguintes, enquanto esperava a execução na prisão, Sócrates não deixou apagar o farol de sabedoria que iluminaria até os nossos tempos, discutindo filosofia e a natureza da alma com seus seguidores. Ele rejeitou a fuga, uma afronta às leis que ele tanto respeitava. E assim, bebendo a cicuta, uma poção letal, Sócrates abraçou a morte como a um velho amigo, partindo deste mundo com a dignidade de um verdadeiro filósofo. Foi assim que Platão descreveu estes momentos finais em Fédon.
Platão e Xenofonte mostraram um homem fiel à verdade, à razão e à virtude, mesmo quando encara a morte. Durante o julgamento, Sócrates reforçou o seu legado, um dos grandes pensadores que a história já conheceu. A morte de Sócrates não foi um fim, transformou-se em um marco na história do pensamento humano. Seu legado, seu método, suas ideias, tudo continuou a viver, inspirando gerações, moldando o curso da filosofia e do pensamento crítico. Em sua essência, o julgamento de Sócrates foi mais do que um evento histórico; foi uma representação da eterna luta pela verdade, pela justiça, e pelo direito de questionar o mundo ao nosso redor.
Nas obras Apologia” e Críton, Platão descreve um Sócrates, de pé firme, de cabeça erguida encarando seus acusadores. Um homem que não se desviou, não se desculpou. Defendeu tudo que acreditava ser certo, com a sua vida. Talvez este relato, ético e heroico, tenha sido fruto da admiração do discípulo pelo mestre, talvez tenha sido assim preciso. Prefiro imaginar que Platão foi justo na admiração e fiel a descrição. Gosto de imaginar um homem, experiente e vivido, ciente que seus atos não influenciariam seu destino, vestido com a dignidade que só a contestação do futuro consegue dar. De qualquer forma, assim terminou a história do homem chamado Sócrates. E começou a filosofia.
Para tentar entender como Atenas chegou a um julgamento com pena capital para um velho que tudo que fazia era contestar, precisamos voltar um pouco um pouco mais na história da Grécia.
Os Sofistas e a Invenção da Narrativa
Talvez uns 300 anos antes de Sócrates, Thales de Mileto, não se sabe bem porque, saiu pelo mundo, estudando, aprendendo e ensinando que tinha aprendido. Pouco, muito pouco, depois do começo da escrita no ocidente. Talvez por isso, Thales também não tenha deixado nada escrito. O que sabemos sobre ele registrado em pergaminhos foi feito por Diogenes Laertius uns 100 anos depois do Julgamento de Sócrates. Thales foi o primeiro homem que a história registrou como tendo interesse em entender o mundo e ensinar o que aprendeu. Um momento tão importante na evolução da humanidade que ele, Thales de Mileto, é considerado um dos Sete Sábios fundadores da Grécia e, da cultura ocidental.
Se eu fosse um destes homens de letras e histórias diria que Thales de Mileto foi o primeiro professor, o primeiro filósofo, o primeiro matemático e o primeiro cientista do ocidente. Podemos colocar sobre seus ombros o fardo de aprender para evoluir. A Grécia, fundada por homens deste calibre foi o solo perfeito para que florescesse a percepção do valor do conhecimento. E por valor, digo riqueza e poder.
No tecido do tempo, bordado com os fios de sabedoria e da busca pelo conhecimento fiados por Thales de Mileto, encontra-se uma ligação profunda entre Thales e Sócrates, dois gigantes que escalaram a montanha da filosofia. Quase como se as ondas criadas por uma pedra atirada por Thales tivessem sido ampliadas pela pedra atirada por Sócrates. Entretanto, para entender os eventos que levaram ao Julgamento de Sócrates, precisamos vislumbrar o poder do conhecimento na sociedade ateniense nos idos de Sócrates e para tal deixaremos Thales na história e navegaremos até um ponto onde Thales já era história e Julgamento de Sócrates nem aparecia no horizonte.
Na Grécia, mais ou menos 100 anos antes do Julgamento de Sócrates surgiu uma figura imponente, um homem que desafiou as percepções convencionais de verdade e moralidade do se tempo de forma magistral: Protágoras de Abdera. Frequentemente laureado com o título de primeiro sofista. Vagando pelo cenário intelectual da Grécia do século V A.C.. Como uma sombra entre o conhecimento pelo conhecimento e o conhecimento pelo poder.
A lenda de Protágoras se ancora em uma declaração muito mais que audaciosa: “O homem é a medida de todas as coisas”. Um aforismo, carregado de profundidade, que ilustra a essência do pensamento sofista. Protágoras não via a verdade e a moralidade como entidades fixas e universais, mas como realidades moldadas pelas experiências e percepções individuais. Em suas palavras, encontramos a origem do relativismo, uma ideia que reverberará através dos séculos, desafiando cada geração a ponderar sobre a natureza da verdade.
O pensamento de Protágoras não se limitava a reflexões abstratas, aplicava suas ideias no mundo prático. Como educador, Protágoras foi um pioneiro, um dos primeiros a reconhecer o valor do ensino pago. Seus cursos abordavam temas como retórica, ética e lógica, habilidades inestimáveis na Atenas democrática, onde a arte de argumentar e persuadir era vital para a participação nos assuntos públicos. Nasce em Protágoras o conceito de educação paga.
Esta abordagem inovadora de Protágoras refletia o espírito de uma época em transformação. A democracia germinava em Atenas, trazendo consigo uma sede por educação e um apetite voraz por debates e discussões. Os sofistas, com Protágoras à frente, responderam a essa demanda com vigor. Eles eram viajantes do conhecimento, levando suas lições de cidade em cidade, tecendo a retórica e a dialética na tapeçaria da cultura grega.
A palavra sofista tem origem etimológica no termo sábio, em grego “σοφός” (sophos). Protágoras e seus discípulos ensinavam os filhos dos poderosos em uma democracia nova, inocente e inexperiente. A democracia ateniense era baseada em grande parte na participação ativa dos cidadãos nas assembleias (ekklesia) e nos tribunais. Neste ambiente, a habilidade de falar bem e persuadir os outros tornou-se essencial para o sucesso político. Os sofistas, com suas habilidades em ensinar retórica e argumentação, estavam, portanto, em uma posição única para treinar os futuros líderes e influenciadores políticos. Esta posição representava uma posição de poder, até então, inédito e único.
Como os sofistas foram os primeiros educadores a cobrar pelos seus ensinamentos o acesso aos seus serviços na maior parte das vezes estava limitado àqueles que podiam pagar, normalmente membros das classes mais ricas e poderosas de Atenas. Assim, o ensino dos sofistas tornou-se um recurso valioso para as famílias ricas que desejavam posicionar seus filhos para o sucesso em carreiras políticas. Pessoas menos modestas diriam que esta é a descrição de um ciclo vicioso de interesse e poder.
Os jovens que recebiam essa educação sofisticada tinham uma vantagem significativa em termos de participação política e influência. Grandes assembleias definiam a ordem, a estrutura, o funcionamento e, consequentemente a distribuição da riqueza em Atenas. A arte de persuadir assumiu um papel mais crítico do que o conhecimento da verdade em si. A retórica evoluiu para se tornar uma ferramenta de comando e influência, e a capacidade de instruir nessa arte tornou-se uma passagem lucrativa em direção à prosperidade. Protágoras criou uma geração de discípulos mestres na arte de ensinar a retórica.
No tempo de Sócrates, Protágoras e seus discípulos não brilhavam sem controvérsias. Seu relativismo chocava-se com os ideais de verdade universal defendidos por filósofos como Sócrates e Platão. Platão, em particular, retratava Protágoras e outros sofistas em seus diálogos, frequentemente em oposição a Sócrates. Esses embates intelectuais iluminam as profundas diferenças em suas abordagens filosóficas, refletindo as tensões de uma era em busca de compreensão e significado.
Mais que subverter os jovens, ou desacreditar os deuses, Sócrates desafiou a estrutura de poder ao opor a verdade as narrativas criadas pela dialética. A verdade defendida por Sócrates emperrava a roda do poder. Principalmente, agora sim, entre os jovens não tão ricos, não tão poderosos e sedentos de oportunidades. Atenas estava em um momento difícil, havia perdido a Guerra do Peloponeso contra Esparta havia uma sensação de incerteza e desilusão. Este clima favorecia Sócrates e, a cada nova ideia aceita, maior era o risco a estrutura de poder estabelecida, baseada na retórica ensinada pelos sofistas. Neste cenário, Sócrates foi acusado. E, como vimos, condenado a morte. Ainda resta uma questão: o que Sócrates ensinava de tão perigoso?
O Poder da Verdade
Ao olharmos para trás, para essa era de questionamentos e descobertas e focarmos em Protágoras vemos o reflexo de uma sociedade em transformação. Protágoras, e os sofistas devem ser lembrados como aqueles que valorizaram a persuasão sobre a verdade. Definindo que a verdade era relativa, e dependente do homem, cada homem, abriram caminho para a valorização da dialética, da narrativa, da persuasão e do poder que se criava com este ensino. A execução de Sócrates enterrou o relativismo da verdade até o século XX, outro tempo de incertezas, medo e narrativas. Filósofos como Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Jacques Derrida se debruçaram sobre o tema da relatividade. Tempos confusos onde, novamente, a humanidade diverge em busca de uma verdade que possa ser adaptada as necessidades do tempo.
Sócrates, um mestre da indagação e do diálogo, não apenas procurava a verdade, mas a considerava um pilar essencial da existência humana. Diferente dos sofistas, que viam a verdade como um conceito fluido e subjetivo, Sócrates buscava verdades mais absolutas e universais, ancoradas na razão e na reflexão que poderiam ser alcançadas através do uso da razão e do diálogo.
Seu método, uma dança dialética de perguntas e respostas, conhecida como método socrático, era uma ferramenta para desenterrar a sabedoria oculta sob camadas de suposição e erro. Este processo de questionamento socrático era uma espécie de parto intelectual, trazendo à luz insights profundos a partir da própria ignorância reconhecida. Este método seria responsável séculos depois por Benjamin Franklin um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos da América. Um poderoso debatedor que usando da retórica e do método socrático influênciou de forma crucial tanto durante a Revolução Americana quanto na sua carreira diplomática.
A jornada de Sócrates em busca da verdade não era apenas um exercício intelectual; estava profundamente entrelaçada com a ética. Ele via a verdade como um alicerce para a virtude e a moralidade. “Conhece-te a ti mesmo”, sua máxima mais famosa, ressoa como um chamado à introspecção e ao autoconhecimento como o caminho para a compreensão mais profunda. Contudo, Sócrates também era um emblema da humildade filosófica.
A única sabedoria verdadeira é saber que nada sabe. Essa confissão de ignorância não era uma admissão de derrota, mas uma rejeição da falsa pretensão de saber. Uma demonstração de que o reconhecimento da própria limitação é o primeiro passo no caminho do verdadeiro conhecimento. Seja humilde como Sócrates e Jesus dito por Benjamin Franklin é, ao mesmo tempo, um elogio como uma evidência da influência das verdades de Sócrates e Jesus, nos destinos dos EUA e do mundo. Benjamim Franklin deve ter percebido que ao aceitar que você não sabe nada, você se permite o potencial de aprender e buscar a verdade, em vez de tentar encaixar o mundo na forma pensar. Seus sentimentos e suas opiniões irão desvanecer sob a luz da verdade.
As reflexões de Sócrates sobre a verdade não foram meras abstrações, eram fundamentais para a compreensão da justiça, da bondade e da vida virtuosa. Para Sócrates, a verdade era a chave para desbloquear os segredos de uma vida bem vivida, uma vida alinhada com os princípios éticos mais elevados. E aqui está o problema. Frequentemente a verdade descoberta contradiz a narrativa criada pela retórica pura. Frequentemente a verdade descoberta pelo método de Sócrates se opunha a retórica usada para manter, ou obter o poder em Atenas e por isso, só por isso, Sócrates precisava ser parado.
Eu não sou um homem de letras e histórias e nem a história é uma ciência. A história é apenas uma narrativa, criada com a arte da retórica, para explicar eventos e fatos. Talvez Sócrates não gostasse desta narrativa, não fosse o fato que esta é apenas uma réplica a narrativa popular no Brasil do século XXI que privilegia o relativismo. Como diria Nelson Rodrigues: Toda unanimidade é burra.
Ao considerarmos a abordagem socrática à verdade, somos convidados a mergulhar nas profundezas de nossa própria mente e espírito, a questionar, a ponderar e, acima de tudo, a nunca cessar nossa busca pela verdadeira sabedoria. Sócrates, o arquiteto da verdade, permanece um símbolo eterno dessa incansável jornada humana em direção ao conhecimento, à compreensão e à virtude.