Frank de Alcantara
Frank de Alcantara
Pai, marido, professor e engenheiro.
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A Origem da Verdade - Parte 1

A Origem da Verdade - Parte 1

Na vastidão do tempo, aproximadamente quatro milênios atrás, encontra-se o primeiro murmúrio de descontentamento de um cliente, um grão solitário na areia do relógio. Isso ocorreu no solo da Suméria, no domínio exuberante da Babilônia, onde a verdade era tão valorizada, tão sagrada, que sua ausência precisou ser registrada para se tornar uma marca, uma cicatriz na face do tempo.

Imagem do Museu Britânico, licenciada em Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International (CC BY-NC-SA 4.0) license.

O artefato 131226 do Museu Britânico reluz em uma gaveta do Museu Britânico como um farol incontestável do inconformismo de Nanni, o consumidor enganado, traído em sua confiança.

Se buscar atentamente encontrará uma inundação de informações, uma cascata de páginas web, centenas, se não milhares, se desdobrarão diante de seus olhos. Todos clamando com a mesma voz, uma melodia repetida, todos cantando louvores ao tablet como a primeira inscrição de descontentamento comercial conhecida na nossa história.

No entanto, a menção da primeira instância de desonestidade - do primeiro dedo apontado para a falta de veracidade, o dedo acusatório dirigido a Ea-nasir, por não entregar o que foi prometido, por não agir com ética, por não honrar a verdade - revelará um vazio quase tão grande quanto sua falta de ética.

Nenhuma página sussurra sobre a primeira reclamação do homem contra a quebra da confiança, a primeira voz levantada em protesto contra a falta de veracidade. Ea-nasir, o acusado, permanece ausente nas páginas da história, como se fosse um ecos de uma era antiga, uma lição não aprendida sobre a necessidade da verdade.

Ainda agora, em nossa modernidade iluminada, ecoam as lamentações, as queixas de clientes contra fornecedores. Ao longo das minhas andanças, do meu tempo vagando com os pés na areia e os olhos no mar, testemunhei essas centenas de casos. Até eu mesmo, em momentos de desespero, levantei minha voz em protesto. A ferroada da traição, o sabor amargo de ter sido enganado, perfura o peito como uma lâmina afiada. No entanto, em minha mente, nunca se formou a ideia de que o fornecedor tivesse, deliberadamente, tecido uma teia de mentiras. Teria você pensado de outra maneira?

No jogo de cartas, a dança sutil da sorte com a habilidade, já conheceu alguém que se desviou do caminho reto e justo, que trapaceou para vencer? E na sala de aula, em meio ao sussurro de papéis e ao arrastar de lápis, já viu alguém colar em uma prova? Colou? Na fila para o pão, para o cinema, para a vida, alguém já furou a vez? No cofre público, conhece alguém que tenha desviado verbas, distorcido números, traído a confiança do povo?

Quantos disfarces criamos, quantos eufemismos ao longo do despertar da civilização, apenas para atenuar a dureza fria da falta de ética, da desonestidade, da mentira? Criamos palavras, construímos vocabulários inteiros, como se pudéssemos obscurecer a essência da falta de verdade, como se pudéssemos tornar a mentira menos fria e amarga por meio da linguagem.

A queixa de Nanni, como um sussurro carregado pelo vento através das eras, continua a nos lembrar a importância da verdade. Sua voz só nos alcança, no entanto, graças à escrita. Mergulhando na história desta tabuinha de argila, descobri que a escrita cuneiforme, empunhada pelos babilônicos quatro milênios atrás, se baseava em um alfabeto.

Parece curiosamente familiar para nós, herdeiros da tradição latina. Uma linhagem mais próxima de nós do que a daqueles que optaram por empreender o caminho dos símbolos e das imagens ao longo da história, e mesmo na contemporaneidade.

A espinha dorsal da nossa civilização é construída com letras do alfabeto. Primeiro, foi esculpida pelos babilônios, esculpida em tabuinhas de barro sob o sol do antigo Oriente. Em seguida, passou pelas mãos dos assírios, imortalizada na pedra sob a luz de um sol diferente. E, finalmente, os gregos a levaram consigo, impregnando seus pensamentos e filosofias, moldando-a em seu próprio alfabeto, que, por sua vez, floresceu para se tornar a raiz da escrita latina que agora molda nossas palavras, nossos pensamentos, nosso mundo.

A escrita, tal como a conhecemos agora, não surgiu da noite para o dia. Foi o resultado de um longo processo de evolução que se estende por quatro mil anos. Nesse tempo, surgiram várias formas de sistemas de escrita. O segundo vislumbre do alfabeto apareceu com o Proto-Sinaítico, criado por semitas que trabalhavam no Egito, entre 1850-1550 a.C.

Mais tarde, o alfabeto fenício foi forjado, nascido do mar e do comércio dos povos que viviam no Levante. Hoje, Líbano, Síria e norte de Israel por volta do século 12 a.C. Era um sistema simples e eficaz, Eram 22 letras, todas consoantes, usadas para dar voz ao silêncio e validar acordos entre homens. Usavam-se para marcar o nome e a idade de um vinho em uma ânfora de barro. Assim, quando um homem se debruçava sobre o vinho, sabia de onde vinha e quantos verões haviam passado desde que a uva tinha sido colhida.

Os homens vêm marcando o nome e o ano do vinho desde que começaram a bebê-lo. Os mais velhos desses registros remontam ao tempo de Nanni. Gosto de pensar que, depois de registrar sua queixa, Nanni talvez tenha ido até a taberna mais próxima. Talvez tenha pego uma ânfora, olhado para o nome e o ano gravados nela, e despejado o vinho em um copo. Talvez tenha bebido e encontrado algum conforto na bebida, esquecendo por um momento o descontentamento que o levou a registrar sua queixa. Era uma época diferente, mas os homens não mudaram tanto assim.

No século 9 a.C., os gregos, os marinheiros do Mediterrâneo, encontraram o alfabeto fenício. Adaptaram-no, acrescentaram vogais a ele, e moldaram o primeiro alfabeto verdadeiro onde cada som, vocal e consonantal, poderia ser registrado.

Com o tempo, este novo alfabeto grego formou a fundação para muitos sistemas de escrita, inclusive o alfabeto latino que prevalece no mundo ocidental hoje.

Por volta de 800 a.C., os gregos alcançaram um grande marco - criaram um sistema de escrita que tinha sinais distintos para consoantes e vogais. Este alfabeto grego era uma reimaginação do alfabeto fenício. Este é um século fundamental para nossa história um século que voltará a nossa atenção como um degrau, uma marca da importância da verdade.

Finalmente, no século I a.C., os romanos consolidaram o alfabeto latino. O formato e o valor das letras latinas foram inspirados pelo alfabeto grego, particularmente a variante usada pelos etruscos, que habitavam a Itália central antes da ascensão de Roma. E assim, a maioria dos alfabetos modernos, incluindo o português, a última flor do lacio, tem suas raízes firmemente plantadas neste legado greco-romano.

Voltemos ao oitavo século antes de Cristo. As datas precisas de quando Homero compôs os épicos, a Ilíada e a Odisseia, ainda são discutidas pelos homens de letras e história. Em geral, acredita-se que essas obras surgiram na virada entre a Idade das Trevas grega e o período Arcaico, este nosso século oito antes de Cristo.

As histórias contidas nesses épicos, porém, são mais antigas do que os pergaminhos que as guardam. Falam de heróis e eventos da Idade Heroica grega, remontando ao tempo micênico - há cerca de três a quatro milênios. Estas obras foram sussurradas de boca em boca antes que a tinta usasse o alfabeto para aprisioná-la em páginas.

É digno de nota que a Ilíada e a Odisseia estão entre as mais antigas histórias escritas do ocidente. Por sua importância, nunca deixaram de ser estudadas e lidas. Durante séculos, homens nascidos no ocidente aprendiam a ler e a escrever sob a luz dessas obras. Os homens de letras e histórias pensam que Homero ditou seus poemas. Se isso é verdade, o nome do escriba que teve o privilégio de transcrevê-los se perdeu com o tempo. Para ser honesto, há pouco que sabemos sobre os textos originais, sequer temos certeza que foram ditados originalmente por Homero. Os textos completos mais antigos que dispomos datam do século X alguma coisa como 1300 anos depois da data mais aceita como a data de criação. Isso não tira nenhum brilho dos poemas, da história destes poemas, ou da sua importância para a nossa civilização. De fato, esta incerteza torna estes poemas ainda mais interessantes.

Cerca de quatrocentos anos separam a odisseia de Odisseu e o julgamento de Sócrates. Quatrocentos anos, o tempo que nossa civilização levou entre aprender a escrever e começar a filosofar.

Sócrates, uma presença que atravessa a história, um pilar da filosofia, seu verdadeiro retrato permanece um enigma. O que temos são fragmentos em antigos textos, a maioria destes textos foi escrito por seus alunos, Platão e Xenofonte, além de Aristófanes, o mestre do humor.

Sócrates, por padrões gregos, não era um espécime notável. Baixo, robusto, com um nariz achatado e olhos que se destacavam mais do que o usual. As palavras de Platão no “Banquete” e Xenofonte nas “Memoráveis” confirmam tal descrição. Hoje podemos usar as ferramentas de inteligência artificial para criar uma imagem de Sócrates.

Sócrates segundo uma inteligência artificial

Todavia, sobre Sócrates o conhecimento que possuímos veio de Platão e Xenofonte, que o retrataram como um homem velho que caminhava descalço, raramente se lavava e parecia imune à bebida e à lascívia. Um homem tão perdido em seus pensamentos filosóficos que frequentemente parava e se perdia em reflexões profundas.

Seu julgamento, uma marca indelével na história antiga, ocorreu em Atenas, uma democracia em 399 a.C. O dia exato do julgamento e o clima, são incertos. Mas assumindo o outono mediterrâneo, provavelmente o clima era suave, com dias limpos de Sol alto com temperatura variando entre 15 e 25 graus, não muito diferente dos nossos dias. Platão, discípulo de Sócrates, ofereceu o relato mais detalhado. E, Xenofonte, seu outro aluno, também deixou uma conta do ocorrido.

Sócrates enfrentou acusações de desrespeitar os deuses venerados por Atenas e de corromper a juventude. As acusações parecem mais motivadas por questões políticas e sociais do que por verdadeiras blasfêmias. Considerado culpado, a cicuta foi sua sentença. Ele rejeitou a fuga e aceitou a morte com serenidade, como observado por Platão.

Em defesa da acusação de corromper a juventude, Sócrates declarou em Apologia de Platão: “Sou culpado por corromper os jovens e por fazê-los acreditar, não nos deuses da cidade, mas em outros. Isso é o que você diz, Meleto, não é?” (Platão, Apologia, 24B-C).

Xenofonte, por sua vez, retratou a aceitação serena de Sócrates de sua morte: “De todas as maneiras, Sócrates nunca parou de se preparar para morrer. Seu princípio era cuidar da alma, não do corpo; acreditava que a virtude não vem das riquezas, mas as riquezas e todas as outras coisas boas dos homens, tanto privadas como públicas, vêm da virtude”. (Xenofonte, Apologia de Sócrates, 14)

Nas obras “Apologia” e “Críton”, Platão conta descreve um Sócrates, de pé firme e de cabeça erguida. Sócrates, um homem que não se desviou, nem pediu desculpas. Defendia o que acreditava ser certo, a sua vida. Talvez tenha sido fruto da admiração do aluno pelo mestre, talvez tenha sido assim. Ainda não temos como sabê-lo.

Defendendo-se, Sócrates dizia que seu dever era questionar Atenas, questionar as pessoas. Dizia que a vida, se não examinada, era inútil. Ele via o seu papel de questionador como um dever de vida e morte.

Condenado à morte, Sócrates manteve-se calmo, aceitando o que vinha. Argumentava que temer a morte não fazia sentido, pois ninguém sabia o que viria depois. Imaginava a morte como um sonho eterno, talvez uma chance de conhecer os grandes homens que já se foram.

Platão e Xenofonte, em suas palavras sobre o julgamento de Sócrates, mostram um homem que se mantém fiel à verdade, à razão, à virtude, mesmo quando encara a morte. Durante o julgamento, Sócrates reforçou o seu legado, um dos grandes pensadores que a história já conheceu.

No vasto território do ocidente, é Sócrates quem planta a primeira semente na busca incansável da verdade. É aqui, nesta encruzilhada de conhecimento e mistério, que nos afastaremos da nossa jornada. Em breve, deste ponto, retomaremos a caminhada.